Na berma de nenhuma estrada (Mia Couto)


Ofélia e a eternidade
Afinal, o destino nos separou. Único culpado dessa pequena morte: o tempo, esse animal que defeca memórias. [...]

O fazedor re luzes
- Mas eu filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exato e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que quiser. Eu não tenho um aqui. (p. 30)
[...]
Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada. Em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em branco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. Tarde de mais. Já a água é toda as águas e eu me vou deitando na capulana  onde as primeiras mãos em seguraram a existência. (p. 33)

O último ponto cardeal
[...] Mas o homem lhe beija enquanto sussurra: que aquela morte não era de morrer. O simples deslize do sol para a sombra, da água para o charco. Morrer de passagem, temporariamente sem tempo. E jurou, estivessem juntos ela e ele e esse outro vindouro, para além e além. Lá onde não há nenhum ponto cardeal.


As lágrimas de Diamantina
[...] O homem, para ser humano tem que ser desumano? O que é certo: ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de existir, Afinal, a vida se confirma à força de rasgão: ela dilacera logo no ato de nascer, separando mais que a própria morte. (p. 35)


A outra
[...] Mas a paixão é coisa que morre mesmo antes de se distinguir, tão sorrateira que nem lhe notamos enterro e velório. No jejum do coração quem emagrece é a alma. Até que o céu perde o cheiro, tempo não tem sabores e a vida descolora.

Na berma de nenhuma estrada
Estou aqui no sopé da estrada, à espera que alguém me leve. Um qualquer, tanto faz, Basta que passe e me leve. É meu sonho antigo: sair deste povoado, alcançar o longe. Até já cansei este sonho. Meu tio sempre me avisou: não durma perto da estrada que as poeiras irão sujar seus sonhos. E aconteceu. Mas eu, nem se acredita, eu sempre gostei de poeira porque me traz a ilusão dos caminhos que não conheço.
[...] Lembro de tudo isto hoje e me parece despedida, agora que escurece diante de tudo e é noite fora e dentro de mim. [...]


O assalto
[...] Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para os outros.

O escrevido
A vida é estrada andando sobre o pé do tempo. Bernardinho não era nem pegada nem caminho. Viver não era seu verbo. Ele apenas ficava. Como pedra a espera de ser casa. Fazia de despropósito: esperava pelo enrolar dos acontecimentos. E se nada nunca sucedesse, ele se deixaria ficar como molde para outra existência.
[...]
Porque a janela é da casa o que não é, o vazio onde ela sonha ser mundo. [...]

A adivinha
[...] Passava a idade e a filha demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e haver. E o ser é apenas aresta do que resta.

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