O fio das missangas (Mia Couto)
[...] afinal, nem envelheci. Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.
A saia amarrotada
[...] Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
[...]
Uma tristeza de nascença me separava do tempo,. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi a própria fome.
A despedideira
[...] Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo.
[...]
Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é que tem asas. Mas são asas de avestruz. porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando-se, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
[...]
Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
[...]
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais.Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns.
Os olhos dos mortos
[...] Estar-se contente, ainda vá. Que isso é passageiro. Mas ser-se alegre é excessivo como pecado mortalício...[...]
[...] Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custaram as dores. Somos feitos assim, de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
[...]
Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos.
As cartas de Ronaldinho
Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro e o de outro é rabiscado para sobrevivência.
O peixe e o homem
Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.
O peixe e o homem
Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.
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