5.2 O jogo e a criança (Jean Chateau)

CAPÍTULO II - A DISCIPLINA DO JOGO

A. - A regra e a ordem 
[...] A criança não é uma tábula rasa sobre a qual podemos inscrever o que bem entendermos. Como não podemos de um loiro fazer um moreno, de um nervoso um fleugmático, jamais podemos, quaisquer que sejam nossos métodos, conseguir modelar inteiramente a criança. O pedagogo não é - e não deve querer ser - um criador, mas um jardineiro que sabe fazer crescer sementes. A educação, Rousseau via mais claro que Helvétius, continua a natureza; ela se contenta em dirigir e frear o fluxo primitivo, coloca diques para represar a atenção, barragens para fazer com que o fluxo corra por um determinado leito e não por outro. Mas se não há, a princípio, tendências em potencial, se falta o fluxo, não se pode fazer grande coisa, não se pode irrigar novas terras, nem construir usinas; o potencial do dado primitivo condiciona todo o potencial ulterior. (p. 56)

[...] Mas o jogo, um pouco mais tarde, nos fornece repetições que são como um esboço de ordem. Há, entre as crianças de um ou dois anos, jogos que  consistem em recomeçar sem descanso uma mesma atividade. a repetição de uma determinada palavra é muito frequente e dá continuação à repetição de certos sons, de certas sílabas pelo bebê. Alguns jogos tornam-se verdadeira obsessão: uma criança de oito anos bate até cem vezes as teclas de um piano sem se cansar, uma outra não para de abrir uma caixa. Há períodos manifestos de jogos; durante alguns dias uma crianças se diverte deixando cair os objetos ou sacudindo-os. Um aluno de escola maternal é ainda muito voltado para a repetição, podendo, por exemplo, subir cem vezes seguidas os três degraus de uma escada. Esse amor à repetição explica o êxito inegável dos antigos métodos de ensino da escritura: uma criança que repete um a numa página em branco não se cansa absolutamente como um adulto. (p. 56-57)
[...]
Uma das manifestações mais vivas desse amor à repetição encontra-se no desenho infantil que é um jogo de um gênero especial. Não só a criança se fixa, na sua concepção de figura humana, num tipo que ela repete, como também não hesita em desenhar um sem número de objetos semelhantes justapostos. Aliás, já publicamos um desenho de casas, com 19 casas de um lado da folha e 18 no verso; mas elementos sem nenhuma significação podem perfeitamente agradar; a criança repete incansavelmente círculos, letras, seja lá o que for; num desenho, encontramos certa vez 79 rodas de carroça. (p. 58)
[...]
O objeto colocado em ordem é o que podemos reencontrar, como o objeto familiar é aquele com que sabemos como agir. A ordem facilita, portanto, a ação pela qual o eu se expressa e se afirma. Por meio dela, não apenas eu reencontro os objetos, mas também, e sobretudo, eu "me encontro nela", como diz a linguagem popular, [...] Colocar ordem no mundo é, portanto, dispô-lo em função de meus gestos futuros, conformá-lo a meus atos, assimilá-lo a mim. (p. 61)

[...] A sucessão de condutas de jogos, até por volta dos 6 ou 7 anos testemunha uma trajetória da criança para noções não concretas, em direção à formação de sistemas de regras abstratas. (p 64)


B. - Os obstáculos à disciplina
[...] A criança tem muito mais consciência de seu crescimento na obediência a essa regra tradicional  do que na invenção de regras arbitrárias. Ela distingue bem entre o "jogo verdadeiro", em que  se joga "pra valer", e as suas variantes que pode ocasionalmente inventar; para ela, apenas as regras do jogo verdadeiro têm valor; as demais são meras convenções passageiras. (p. 66)
[...]
A instabilidade dos pequenos também é notável. Quando os pequenos participam de jogos com os grandes, acontece-lhes com frequência se aborrecerem e procurarem outra ocupação; deixam o jogo para ir ver um carro que passa na rua; na cabra-cega, no jogo do gato e do rato, eles podem conservar seu lugar, na roda, praticando o jogo solitário, por exemplo, fazendo desenhos na terra. Basta observar alguns minutos os pequenos da escola maternal para constatar com que felicidade eles passam de um brinquedo para o outro. [...] (p. 67)
[...]
Tratemos agora dos dois obstáculos essenciais: o egocentrismo e a euforia. O egocentrismo não é prerrogativa da criança, mas é encontrado também no animal e no adulto. Consiste em ter, do mundo, uma visão cujo centro é o eu, em manter-se numa única perspectiva, a própria, esquecendo todas as demais, aquelas que outrem conhece. Face a um problema qualquer, um homem normal e culto vislumbra sucessivamente diversos pontos de vista, os diversos lados da questão. Ele se pergunta o que acontecerá em tal hipótese e o que, na mesma hipótese, acontecerá aos outros. Tenta sair de si mesmo, perguntar-se o que pensaria uma outra pessoa na mesma situação, o que pensarão os outros a respeito das atitudes dele. (p. 68)
[...]
O egocentrismo reside numa incapacidade de realizar essas viagens de exploração imaginária, numa incapacidade de mudar de ponto de vista. Avaliar uma cidade, uma montanha, um problema humano a partir do aspecto que ele se me apresenta, num dado momento, é deixar-me levar pelo egocentrismo.  (p. 68-69)
[...]
Esse egocentrismo, entretanto, nada mais é do que uma derivação secundária, uma formação própria ao adulto que calcula. Se se quer achar a origem do egocentrismo, é preciso considerar que o abismo o separa do egoísmo. Quantos intelectuais, perdidos em suas reflexões, são incapazes de se colocar no lugar do próximo. [...] Veja-se uma criança de sete anos que se diverte lendo e, ao lado, um pequeno de quatro anos que não sabe ler e que chora; suponha que, para consolar o garoto, o maior lhe dê seu livro. Temos aí um exemplo de puro egocentrismo, aliado a uma evidente benevolência. É por aí que se pode compreender a coexistência na criança da crueldade em relação aos animais e da benevolência que ela demonstra em outras ocasiões: para lastimar o animal que sofre, é preciso poder "colocar-se no seu lugar". Os jogos com os animais são assim quase sempre o testemunho do egocentrismo infantil. A criança que brinca de afogar moscas para em seguida reanimá-las colocando-as no sal é a mesma que, numa outra ocasião, estará cheia de amor por uma libélula; para ela não há nisso nenhuma contradição; e ela compreende mal, em sua pouca idade, por que o gato se irrita quando se lhe puxa o rabo. (p. 69)

Essa atitude nada calculada de nenhuma má-fé na criança, provém unicamente de uma rigidez dos sistemas intelectuais  ainda muito jovens. O pensamento nascente da criança permanece por muito tempo incapaz de se desligar da perspectiva concreta e egocêntrica que é a do ser não conhecedor da representação, não de posse desse maravilhoso meio de mudar as coisas de lugar e de variar os pontos de vista representando os seres em sua ausência.[...] Pela representação, a criança se liberta dessa situação presente, mas essa libertação não se faz em um dia. E por muito tempo ainda o adulto terá dificuldade quando se tratar de colocar-se no lugar de outrem. (p. 70)

[...] A euforia nasce às vezes do simples anúncio de um sucesso, como se vê, nos jovens, na divulgação do resultado de um exame: essa alegria pode tomar conta de jovens diplomados que gesticulam, falam alto e, sem pensar, deixam-se levar por atos condenáveis, pelo único efeito da energia de sua alegria. Na criança de 7 a 10 anos, o jogo pode, sozinho, provocar esses mesmos efeitos, sobretudo quando o pequeno tem a honra de brincar com os grandes e, por essa presença augusta sente-se enobrecido. (p. 78)

[...] Para os pequenos, nessa hora a  caminhada vira corrida, o canto vira gritaria e a disciplina vira anarquia. Nunca pude ver, num jogo, os pequenos se conservarem em seus lugares na fila. Em qualquer tipo de jogo é sempre a mesma desordem. Em todos os jogos a euforia é igualmente devastadora. Qualquer se presta a isso. Os meninos de 7 e 8 anos voltam o mais rápido possível ao momento do jogo em que a roda se desfaz. (p. 72)

[...] Para que haja disciplina, é preciso que o grupo seja limitado e que o jogo praticado seja um daqueles jogos calmos que inibem qualquer euforia. (p. 75)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

7. Ideias para adiar o fim do mundo (Ailton Krenak)

8.1 MINI-HISTÓRIAS (Rapsódias da vida cotidiana nas escolas do Observatório da Cultura Infantil - OBECI

10.1 A CRIAÇÃO DO PATRIARCADO: História da opressão das mulheres pelos homens (Gerda Lerner)