5.3 O jogo e a criança (Jean Chateau)

CAPÍTULO II - A DISCIPLINA DO JOGO

C. - O objeto, o adulto e o grupo
Acontece muito que o objeto nos pegue de fora de tal forma que os nosso atos parecem ser comandados por ele. 
[...]
O melhor exemplo é a corda de pular. [...] A severidade da corda força-me a coordenar perfeitamente meus gestos, bem melhor do que faria a minha própria vontade. Toda lentidão, todo arrebatamento é logo descoberto e censurado por esse senhor sem piedade. Uma brincadeira como a da corda é uma disciplina moral excelente, por essa obrigação que tem o jogador de disciplinar todos os seus gestos. (p. 74)

[...] O papel do adulto na gênese da disciplina do jogo parece, portanto, bastante reduzido: na idade mais tenra, ele habitua a criança a uma certa cooperação, e mais tarde pode ensinar-lhe algumas regras (mas são os grandes, bem mais que os adultos, que são aqui os instrutores; o adulto só intervém eventualmente. (p. 74)

[...] Após os 10 anos, a criança pode assimilar mais ou menos as regras do jogo às regras dos adultos; ela imagina que as regras do jogo vêm dos adultos; fazendo remontar suas origens aos antigos. (p. 75)
[...] 
Os jogos tradicionais são às vezes extremamente estritos, e sua disciplina se prende à rigidez das regras, rigidez que faz respeitar a autoridade do grupo. (p. 75)


D. -  A origem das regras do jogo
[...]
Deixemos de lado os jogos puramente funcionais que são apenas resultado de uma necessidade interna de despender energia por certa via, pulando, gritando, manipulando. [...] São simples exercícios de uma função que emerge, e não comportam absolutamente a consciência de sua natureza; neles o jogador jamais assume a atitude lúdica, essa atitude que assumimos quando sabemos que jogamos e que nossa ocupação não é séria. (p. 80)

Esses jogos funcionais dão origem àqueles em que aparecem juntas imitação e invenção. [...] (p. 80)
[...]
Por motivos mais fortes, a imitação é servil quando se trata dos jogos relacionados com o trabalho: marcenaria, comidinha, pesca, etc. Essas imitações tendem a cada vez mais a se aproximar de seus modelos com os quais acabarão por se identificar mais tarde. Ao contrário, as outras imitações tornam-se cada vez menos servis, cada vez mais estilizadas. (p. 81)

Que a imitação possa ser estilizada é, aliás, uma necessidade. A criança não pode, ainda que o queira, reproduzir tudo. As imperfeições de sua percepção e de sua memória produzem a imperfeição de suas imitações. Tudo se passa como se o modelo apresentasse unicamente algumas grandes linhas e alguns detalhes. Esquece-se que o médico pode anestesiar, e ele opera a frio, enquanto o paciente grita. O jogo da mina se reduz, em certos casos, a um simples sistema de cordões que, numa cadeira, faz um objeto subir de um plano para o outro. Um bebê é simplesmente um objeto que se embala. A simplicidade de muitos dos objetos ilusórios vem assim do desconhecimento da criança. (p. 81)

[...] O objeto de ilusão e o desenho têm a finalidade de fato, mais de sugerir do que de representar. Seu papel é ajudar a imaginação, e é tudo. É preciso atingir o fim da infância para buscar mais verdade na cópia. (p. 82)

[...]Entretanto, barbante, vara, traço são símbolos menos carregados de sentido do que o corpo: com seu corpo a criança pode representar um mundo de objetos. Em primeiro lugar, seres humanos, evidentemente; também seres vivos, coelhos, ursos etc. Até objetos inanimados; vi crianças transformadas subitamente  em camas, sopeiras, máquinas, árvores. (p. 82)
[...]
Se a invenção já está presente na imitação, parece que, por razão mais forte, deva aparecer nos jogos que são comandados por um modelo e em que a imaginação é mais livre. Mas isso é esquecer que na criança a faculdade inventiva é fraca. Ela tem quase sempre necessidade, para apoiar a imaginação, de um tema, de um desenho geral sobre o qual fantasiar. Esse tema lhe é dado seja pelo modelo imitado, seja pela estrutura tradicional de brincadeira/jogo. À falta desse apoio, a invenção fica limitada. (p. 83)

[...] Não se inventa a partir do nada; inventar, quase sempre, é aplicar a um caso novo uma regra já conhecida. (p. 84)
[...]
É preciso reconhecer que na criança todos [...] tipos de invenção são insuficientes. Ela não sabe extrair um tema geral a partir de um detalhe, como se diz de Newton a propósito do célebre episódio da maçã. É necessário para a crianças ou recorrer ao acaso, ou tomar em qualquer parte um tema que ela desenvolve ou sobre a qual fantasia. À falta de tema original, sua invenção fica confinada, inibida que é pelo tema tomado. Falta-lhe a visão ampla do verdadeiro criador. (p.87)

[...] A criança não vê o mundo como o adulto; ignorando as grandes leis que regem os seres, ela deve constantemente usar esquemas e analogias que nos surpreendem. Por isso também, tantas palavras encantadoras quanto palavras ridículas. É a mesma criança que pode ver nas pétalas "as asas da rosa" ou, diante de um botão de rosa, dizer  que "esta rosa vai ter um bebê". Os absurdos cômicos têm a mesma fonte, na criança, que as poesias mais encantadoras. Mas absurdo e encanto que só existam na apreciação do adulto. (p. 89)
[...]
De qualquer ângulo que olharmos, veremos uma invenção infantil muito estéril. O que mascara para nós essa fragilidade da invenção da criança é a facilidade com que ela pode, num objeto qualquer, ver a imagem de um outro ser. [...] Ela necessita da imprecisão do brinquedo que não tem o que deixou de ter significado; nesse mundo sem referências, ela pode ver o que quiser. [...] Mas não há aí um desenvolvimento extraordinário da imaginação, muito ao contrário. É porque a imaginação infantil é fluida, sem contornos precisos, nebulosas, que ela pode tão facilmente preceder a assimilações. Suas invenções deliberadas mostram bastante a esterilidade de sua faculdade inventiva. E à medida que sua admiração adquire mais força e precisão, desaparecerá esse talento dissimulado de mágico. (p. 90)
[...]
É para o lado do adulto que é preciso olhar agora. Se é a sociedade infantil que preserva  a tradição, a fonte da tradição vem de fora. A criança é como arquivista que conserva riquezas alheias. E ela nem mesmo conhece exatamente a origem dessas riquezas, se bem, que às vezes confusamente adivinhe que elas vêm dos "antigos". (p. 90)
[...] 
Ainda que as crianças inventem as fórmulas de escolha e os jogos - e isso é pouco discutível no caso das primeiras -, não há a menor dúvida de que as peças mestras de seu repertório venham dos adultos e remontem mesmo a uma longínqua antiguidade. Chocalho, bilboquê, pião, remontariam os primitivos. Pode-se então indagar como os ritos adultos puderam tornar-se simples jogos infantis. (p. 93)
[...]
Mas essa conservação de remotas atividades e tradições é um outro ensinamento. Se nossas crianças brincam ainda com fundas, se constroem ainda castelos de areia com torres e fossos, é preciso reconhecer nisso uma espantosa manifestação de conservantismo. [...] Uma personalidade em formação encontra-se, de fato, em luta com as mesmas dificuldades que uma sociedade em organização. De uma parte e de outra, é necessário apegar-se à aquisição antes de tentar ir mais longe, a fim de ter uma base sólida sobre a qual construir. (p. 94)

[...] Por trás do bebê que agita seu chocalho, há gerações inumeráveis cujos antepassados adoraram o que nada mais é que um mero brinquedinho. (p. 95)

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