DOIS - HIPÓTESE DE TRABALHO
[...] Quando abandonamos o conceito de mulheres como vítimas históricas, influenciadas por homens violentos, "forças" inexplicáveis e instituições da sociedade, devemos explicar o enigma central - a participação da mulher no sistema que a subjuga. Sugiro que abandonar a busca por um passado empoderador - a busca pelo matriarcado - seja o primeiro passo na direção certa. A criação de mitos compensatórios do passado distante das mulheres não as emancipará nem no presente, nem no futuro. O pensamento patriarcal é construído de tal modo em nosso processos mentais, que não podemos excluí-lo se não tomarmos consciência dele, o que sempre significa um grande esforço. Assim, quando pensamos sobre o passado pré-histórico das mulheres, estamos tão presos ao sistema explicativo androcêntrico, que o único modelo alternativo que vêm de imediato à cabeça é o oposto. Se não era patriarcado, então só pode ter sido matriarcado. (pag. 65)
[...] Dar historicidade ao sistema de dominância masculina e afirmar que suas funções e manifestações mudam ao longo do tempo é romper com a tradição oferecida. Essa tradição mistificou o patriarcado, tornando-o a-histórico, eterno, invisível e imutável. Mas é exatamente por causa de mudanças em oportunidades sociais e educacionais disponíveis às mulheres que, nos séculos XIX e XX, inúmeras delas enfim foram capazes e avaliar de forma crítica o processo pelo qual ajudamos a forjar e manter o sistema. Somente agora conseguimos conceituar o papel das mulheres na história, criando, assim, uma consciência que pode emancipá-las. Essa consciência também pode libertar os homens das consequências indesejáveis do sistema de dominância masculina. (Pag. 66)
[...] a primeira divisão sexual do trabalho pela qual homens caçavam grandes animais e mulheres e crianças caçavam pequenos animais e coletavam alimentos, parece ter se originado de diferenças biológicas entre os sexos. Não se trata de diferença de força ou resistência, mas unicamente reprodutivas - em especial, a capacidade de amamentar bebês. Posto isso, quero enfatizar que minha aceitação de uma "explicação biológica" só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento humano e não significa que a divisão sexual do trabalho ocorrida depois, com base na maternidade, seja "natural". Pelo contrário, mostrei que a dominância masculina é um fenômeno histórico porque surgiu de um fato biologicamente determinado e tornou-se uma estrutura criada e reforçada em termos culturais ao longo do tempo. (Pag. 71)
[...] Sabemos, pelo estudo de sociedades primitivas do passado e do presente, que os grupos encontram várias formas de estruturar a divisão do trabalho para mães que cuidam de seus filhos e também para mães livres para uma grande variedade de atividades econômicas. Algumas mães levam os filhos com elas por longas distâncias; em outros casos, idosos e filhos mais velhos atuam como cuidadores. Fica claro que, para as mulheres, a ligação entre ter e criar filhos é determinada culturalmente e sujeita a manipulação social. Meu objetivo é salientar que a mais antiga divisão sexual do trabalho, segundo a qual as mulheres escolheram ocupações compatíveis com a maternidade e a criação dos filhos, era funcional, por isso satisfatória tanto para homens quanto para mulheres. (Pag. 71-72)
[...] A mulher, na sociedade pré-civilizada, deve ter sido igual ao homem e pode muito bem ter se considerado superior a ele. (Pag. 73)
[...]
Teóricos já ofereceram várias hipóteses para explicar a ascensão do homem, o guerreiro, e sua propensão para criar estruturas militaristas. Esses variam de explicações biológicas (a concentração mais alta de testosterona no homem e sua maior força o tornam mais agressivo) a psicológicas (o homem compensa sua incapacidade de dar à luz com dominância sexual sobre mulheres e agressividade para com outros homens). (Pag. 75)
[...] Parece-me bem mais provável que a ocorrência de conflitos intertribais durante períodos de escassez econômica tenha fomentado a ascensão ao poder dos homens que tenham realizados grandes feitos militares. (Pag. 76)
[...] Já discutimos o cenário no qual os homens, possivelmente recém-alçados ao poder, em razão de suas habilidades para a guerra, coagiram mulheres contra a vontade delas. Mas por que as mulheres eram comercializadas, e não os homens? C. D. Darlington oferece uma explicação. Ele vê a exogamia como uma inovação cultural que se torna aceita por proporcionar uma vantagem evolutiva. Propões a existência de um desejo instintivo nos seres humanos de controlar a população para a "densidade ideal" em determinado ambiente. As tribos conseguem isso por meio de controle sexual, de rituais que designam homens e mulheres para papéis sexuais apropriados, e recorrendo ao aborto, ao infanticídio e à homossexualidade quando necessário. De acordo com esse argumento evolucionista em essência, o controle populacional tornou obrigatório o controle sobre a sexualidade feminina. (Pag. 77)
Existem outras explicações possíveis: supondo-se que homens adultos fossem comercializados entre as tribos, o que garantiria a lealdade deles à nova tribo? O laço entre homens e sua prole ainda não era forte o bastante para assegurar que eles fossem submissos pelo bem dos filhos. Os homens seriam capazes de atos de violência contra os integrantes da tribo estranha; com a experiência em caça e viagens de longa distância. poderiam escapar facilmente e depois retornar como guerreiros em busca de vingança. As mulheres, por outro lado, seriam coagidas com mais facilidade, muito provavelmente por meio do estupro. Uma vez casadas ou mães, seriam leais aos filhos e aos parentes dos filhos, e assim criariam laços fortes com a tribo de afiliação. Foi assim, de fato, que a escravidão se desenvolveu ao longo da história, como veremos mais adiante. Mais uma vez, a função biológica da mulher a tornou mais adaptável para esse novo papel de fantoche, criado pela cultura. (Pag. 78)
[...] a prática econômica da agricultura reforçou o controle dos homens sobre os excedentes, que também podem ter sido obtidos em conflitos intertribais. Outro fator que pode ter contribuído para o desenvolvimento da propriedade privada foi a distribuição assimétrica de tempo livre. Mas a distribuição deste é desigual: homens se beneficiam mais do que mulheres, pois as atividades de preparação de alimentos e a criação dos filhos continuam a cargo das mulheres. Assim, presume-se que o homem podia usar o novo tempo livre para desenvolver suas habilidades artesanais, iniciar rituais para aumentar seu poder e influência e controlar os excedentes. Não quero sugerir aqui determinismo ou manipulação consciente - é exatamente o contrário. As coisas se desenvolveram de certa maneira, causando determinadas consequências que nem homens nem mulheres planejaram. Eles não tinham como saber das consequências, da mesma forma que os homens modernos que deram início ao admirável mundo novo da industrialização não tinham como saber de suas consequências em relação à poluição e seu impacto sobre a ecologia. Quando a consciência do processo e de suas consequências se desenvolveu, já era tarde demais - pelo menos para as mulheres - para interromper o processo. (Pag.81)
[...]
As ferramentas neolíticas eram relativamente simples, então qualquer um poderia fabricá-las. Terras não eram recursos escassos. Assim, nem ferramentas nem terras representavam oportunidades para apropriação. Mas, em uma situação na qual condições ecológicas e irregularidades na reprodução biológica ameaçavam a sobrevivência do grupo, as pessoas procuravam mais reprodutores - ou seja, mulheres. A apropriação de homens, tais como prisioneiros (o que ocorre apenas em estágio posterior), não supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Portanto, a primeira apropriação de propriedade privada é a apropriação do trabalho de mulheres como reprodutoras. (Pag. 83)
[...] Meu argumento faz uma distinção categórica entre necessidade biológica, à qual tanto homens quanto mulheres foram submetidos e se adaptaram, e hábitos e instituições construídos culturalmente, que colocaram à força mulheres em papéis subordinados. Tentei mostrar como as mulheres acabaram concordando com uma divisão sexual do trabalho, que em algum momento as colocaria em desvantagem, sem poder prever as consequências posteriores. |(Pag. 83)
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