TRÊS - A ESPOSA SUBSTITUTA E O FANTOCHE
O processo pelo qual aldeias neolítica esparsas se tornaram comunidades agrícolas, depois centros urbanos, e enfim estados, é chamada de "revolução urbana" ou "ascensão da civilização". É um processo que ocorre em épocas diferentes, no mundo todo: primeiro, nos grandes vales de rios e costas da China, da Mesopotâmia, do Egito, da Índia e da Mesoamérica; depois da África, no norte da Europa e na Malásia. [...] Na mesopotâmia, também ocorrem mudanças importantes na posição das mulheres: a subordinação feminina dentro da família passa a ser institucionalizada e codificada pela lei; a prostituição se estabelece e se regula; com crescente especialização de trabalho, as mulheres são excluídas aos poucos de determinadas ocupações e profissões. Após a invenção da escrita e do estabelecimento do ensino formal, as mulheres são excluídas do mesmo acesso a tal educação. (Pag. 85)
[...] Robert McC. Adams [...] enfatizou que o núcleo da revolução urbana são as mudanças na organização social. (Pag. 86)
[...] É com a invenção da escrita e a preservação de registros escritos que a história começa. é claro. (Pag. 89)
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O desenvolvimento do militarismo, aliado à necessidade de uma grande força de trabalho para a construção de projetos públicos, originou a prática de transformar prisioneiros em escravos e a consequente institucionalização da escravidão - e, com isso, a institucionalização de classes estruturadas. [...] O que nos interessa aqui é que todos esses vários processos interativos e de reforço mútuo, caminharam para fortalecer a dominância masculina na vida pública e nas relações externas, enquanto enfraqueceram o poder de estruturas comuns e baseadas em relações de parentesco. (Pag. 89)
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No Império Inca, os conquistadores estenderam seu domínio, obrigando as aldeias conquistadas a fornecer mulheres virgens para servir ao Estado e como possíveis esposas de nobres incas. Essa interferência nos padrões sexuais e maritais dos povos conquistados teve a dupla função de enfraquecer as estruturas de parentescos e destacar grupos específicos de parentes para que formassem alianças com os conquistadores. Veremos um processo semelhante em andamento na Mesopotâmia, na prática de destruir cidades conquistadas, matar os homens e condenar mulheres e crianças à escravidão na terra dos conquistadores e também no estabelecimento de alianças de casamento entre soberanos para consolidar a cooperação interestadual. (Pag. 90)
[...] Uma vez que a intenção não é escrever sobre a história social das mulheres no Antigo Oriente Próximo, mas sim traçar a evolução dos conceitos de gênero, nosso relato selecionará modelos e momentos significativos em vez de tentar fazer uma reconstrução histórica completa. (Pag. 90)
[...]
Os túmulos reais de Ur nos contam que as rainhas compartilhavam de status, poder, riqueza e atribuição divina imputados aos reis. Eles nos contam sobre a riqueza e o alto status de algumas mulheres em cortes sumérias, sobre suas variadas habilidades artesanais, além dos óbvios privilégios econômicos. Mas o predomínio esmagador de ossadas femininas em relação às masculinas entre os criados enterrados também demonstra a grande vulnerabilidade e dependência delas na condição de servas. (Pag. 93)
[...]
Os documentos do reinado de Urukagina nos oferece um olhar aterrorizante da vida das mulheres. Lê-se em um dos éditos de Urukagina: "Mulheres de outros tempos se casavam com dois homens, mas as mulheres de hoje foram obrigadas a abandonar esse crime". O édito continua e afirma que mulheres que cometiam esse "crime" na época de Urukagina eram apedrejadas, tendo sua intenção maligna inscrita nas pedras. Em outro trecho, o édito afirma que, "se uma mulher falar [...] de forma completamente desrespeitosa com um homem, sua boca será esmagada com um tijolo refratário". [...] Existem, entretanto, pelo menos, duas possíveis interpretações alternativas do texto: uma é a de que faz referência a uma correção de impostos, pela qual o imposto sobre divórcio foi eliminado, acabando, assim, com o abuso que a mulher sofria quando não podia garantir o divórcio por causa do seu alto custo e se casava de novo. A outra possível interpretação é a de que o édito se refere a viúvas e proíbe que elas se casem novamente. A última me parece ser a interpretação mais provável, uma vez que restrições sobre viúvas se casarem de novo aparecem em vários códigos de leis da Mesopotâmia, tendo sido decretadas melhorias na situação delas só bem mais tarde, no conjunto de leis conhecido como Código de Hamurabi. (Pag. 95-96)
[...] A interpretação de que os éditos de Urukagina denotam uma deterioração acentuada e decisiva no status das mulheres parece não ser comprovada, sobretudo em razão das evidências adicionais de mulheres em posições de poder [...] (Pag. 96)
[...] no período da terceira dinastia de Ur, os soberanos de Ur arranjavam casamentos entre suas filhas e os filhos dos soberanos de Mari e outras cidades. [...] A tradição de casamentos dinásticos continuou no Oriente Próximo e em outros lugares e épocas, sempre que os soberanos dinásticos precisavam legitimar ou fortalecer o regime sobre territórios conquistados ou vizinhos. Era uma maneira mais nobre e elaborada de "comércio de mulheres" praticado muito antes em quase todas as sociedades, limitando as filhas de famílias governantes de classe alta a um papel especial e bastante ambicioso. De certo modo, elas eram apenas fantoches dos projetos diplomáticos e ambições imperialistas de suas famílias; em nada diferente dos irmãos, que às vezes eram forçados a casamentos e não tinham mais poder de escolha do que as mulheres. Ainda assim, como qualquer estudo minucioso de casos específicos deve mostrar, essas princesas costumavam ser influentes, ativas politicamente e poderosas. O papel delas como futuras esposas em casamentos diplomáticos exigia que recebessem a melhor educação disponível. É muito provável que essa tendência a educar princesas para que pudessem ser informantes e representantes diplomáticas do interesse da família depois de casadas conte como evidência ocasional de oportunidades educacionais "iguais" para mulheres, mesmo diante da desvantagem educacional geral feminina ao longo do tempo histórico. O que deve ser lembrado é que esse pequeno grupo de filhas da classe dominante nunca representou todas as mulheres da época e da sociedade. (Pag. 100)
[...] Uma compilação de documentos reais, datados e 1790 a 1746 a.C., descrevem uma sociedade que dava às mulheres da elite grande alcance em atividades econômicas e políticas. As mulheres, assim como os homens, possuíam e administravam propriedades, podiam fazer contratos no próprio nome, abrir processos e atuar como testemunhas. Participavam ainda de transações comerciais e legais como adoções, vendas de propriedades, realização e recebimento de empréstimos. Algumas mulheres aparecem nas listas que mostram que presenteava o rei; tais presentes eram um imposto ou um tributo de vassalo, o que indicava que a mulher tinha posição política e direitos. As mulheres eram também escribas, instrumentistas e cantoras. Realizavam funções importantes como sacerdotisas, adivinhas e profetisas. Como o rei consultava com regularidade profetas e adivinhos antes de tomar qualquer decisão importante ou antes de ir à guerra, essas pessoas eram, na verdade, conselheiros do rei. (Pag. 101)
[...]
Após uma visão geral de fragmentos de evidências relacionadas a mulheres mesopotâmicas em diferentes culturas ao longo de um período de 1.400 anos, o que aprendemos? Vimos evidências extensas de sociedades nas quais a participação ativa de mulheres na vida econômica, religiosa e política era dada como certa. Igualmente dada como certa era a dependência delas e a obrigatoriedade em relação aos parentes homens e/ou maridos. (Pag. 107)
[...]Para elite dominante, o interesse próprio como usurpadores da realeza exigia que o estabelecimento de poder se tornasse o que um analista, de maneira sagaz, chamou de "burocracia patrimonial". A garantia do poder deles dependia da distribuição de familiares em importantes posições subordinadas de poder. Tais familiares nesse período inicial, costumavam ser mulheres - esposas, concubinas ou filhas - que, digamos assim, tornaram-se as primeiras senhoras feudais de seus maridos/pais/reis. Assim nasceu o papel da "esposa como suplente", no qual encontramos mulheres a partir desse período. [...] Mas, em relação à sexualidade nos casos de diversas esposas reais, o poder delas na vida econômica e política são completamente subordinadas aos homens.[...] o poder delas na vida econômica e política depende do quanto é satisfatória a servidão sexual a seus homens. Se não os agradarem mais, [...], perdem o poder por capricho de seus senhores.
Assim, as mulheres acabaram se percebendo, de forma bem realista, dependente dos homens. Isso se manifesta com perfeição na oração de Kunshimatum. Assim como o vassalo feudal de uma época posterior, ela entendeu que sua única segurança era a proteção de seu senhor. É impressionante e assustador contemplar que ela orava não pela própria proteção, como o interesse próprio dita, mas por seu senhor, "para que eu também possa prosperar sob sua proteção". O que vemos aqui é o surgimento de um conjunto de relações de poder nas quais os homens adquiriram poder sobre outros homens e sobre todas as mulheres. Assim, os homens da elite se viam como aqueles que podiam adquirir poder sobre outros, riqueza e bens e em servidão sexual, ou seja, a aquisição de escravas e concubinas para um harém. Mulheres, mesmo as mais seguras, bem nascidas e autoconfiantes, viam-se como pessoas dependentes da proteção de um homem. Este é o mundo feminino do contrato social: mulheres cuja autonomia lhes é negada dependem de proteção e se empenham para conseguir o melhor acordo possível para elas mesmas e seus filhos. (Pag. 108-109)
[...]
Se nos lembrarmos de que estamos aqui descrevendo um período histórico no qual nem os códigos de leis formais haviam sido escritos ainda, podemos começar a perceber quanto as definições patriarcais de gênero estão enraizadas na civilização ocidental. A matriz das relações patriarcais entre os sexos já tinha um lugar fixo antes dos desenvolvimentos econômico e político institucionalizarem por completo o Estado e muito antes de a ideologia do patriarcado ser desenvolvida. [...] A transição definitiva para a nova organização social era a institucionalização da escravidão. (Pag. 109)
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