QUATRO - A MULHER ESCRAVA
Fontes históricas sobre a origem da escravidão são escassas, especulativas e difíceis de avaliar. [...] A maioria das autoridades concluiu que a escravidão deriva da guerra e da conquista. As fontes de escravidão que costumam ser citadas são captura em guerra; punição por algum crime; venda por algum familiar; venda de si mesmo por débito; e escravidão por dívida. A escravidão é a primeira forma institucionalizada de dominância hierárquica na história humana; relaciona-se ao estabelecimento de uma economia de mercado, de hierarquias e do Estado. Por mais opressiva e brutal que, sem dúvida nenhuma tenha sido para suas vítimas, a escravidão representou um avanço essencial no processo de organização econômica, avanço no qual se baseou o desenvolvimento da antiga civilização. Assim, podemos falar justificadamente na "invenção da escravidão" como um divisor de águas crucial para a humanidade. (Pag. 111)
[...] A "invenção da escravidão" baseou-se na ideia de que um grupo de pessoas pode ser classificado como um grupo externo, marcado a ferro como escravizável, forçado ao trabalho e à subordinação - e de que esse estigma de ser escravizável, combinado com a realidade de seu status, faria o grupo aceitar isso como fato. Além disso, era necessário que essa escravização não apenas durasse a vida inteira do escravo, mas que também o status de escravo pudesse ser fixado de modo permanente ao grupo dessas pessoas, antes livres, e a seus descendentes. (Pag. 112)
A invenção crucial, para além de brutalizar outro ser humano e forçá-lo a trabalhar contra sua vontade, foi a possibilidade de classificar o grupo a ser dominado como completamente diferente do grupo que exerce dominância. É evidente que tal diferença fica mais óbvia quando o grupo escravizado são membros de uma tribo estrangeira, literalmente "outros". Ainda assim, para estender o conceito e transformar os escravizados em escravos, de alguma forma diferentes de seres humanos, os homens já deviam saber que essa classificação funcionaria de fato. Sabemos que constructos mentais costumam vir de algum modelo da realidade e consistem de um novo ordenamento de experiência passada. Essa experiência, disponível aos homens antes da invenção da escravidão, era a subordinação de mulheres do próprio grupo. (Pag. 112)
[...] Logo no início da formação do Estado e do estabelecimento de hierarquias e classes, os homens devem ter observado essa vulnerabilidade maior nas mulheres e aprenderam assim que podiam usar diferenças para separar e dividir um grupo de pessoas de outro. (Pag.113)
[...] O conceito de que a honra da mulher está em sua virgindade e a sua fidelidade sexual ao marido ainda não havia sido plenamente desenvolvido no segundo milênio a.C. Defendo que a escravização sexual de mulheres prisioneiras foi na realidade, um passo no desenvolvimento e na elaboração das instituições patriarcais, como o casamento patriarcal e sua contínua ideologia de colocar a "honra" feminina na castidade. A invenção cultural da escravidão baseia-se tanto na elaboração de símbolos de subordinação das mulheres quanto na conquista real de mulheres. Subjugando mulheres do próprio grupo, e depois mulheres prisioneiras, os homens aprenderam o poder simbólico do controle sexual sobre os homens e elaboraram a linguagem simbólica na qual expressar dominância e criar uma classe de pessoas escravizadas do âmbito psicológico. Com a experiência da escravização de mulheres e crianças, os homens entenderam que todos os seres humanos podem tolerar a escravidão, e desenvolveram técnicas e formas de escravização que lhes permitiriam transformar essa dominância absoluta em instituição social. (Pag. 116)
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É óbvio que a dominância praticada a princípio sobre mulheres do próprio grupo foi transferida com mais facilidade a mulheres capturadas do que a homens nessa mesma situação. (Pag. 125)
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Fatores biológicos e culturais predispuseram homens a escravizar mulheres antes que aprendessem a escravizar homens. Para as mulheres, o terror físico e a coerção, ingredientes essenciais no processo de transformar pessoas livres em escravos, tomaram a forma de estupro. As mulheres eram subjugadas fisicamente por meio de estupros; uma vez grávidas, podiam se apegar a seus senhores em termos psicológicos. Daí surgiu a institucionalização do concubinato, que se tornou o instrumento social para integrar mulheres prisioneiras às famílias dos captores, garantindo a estes não apenas seus serviços , mas também a de seus filhos. (Pag. 124)
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A mulher escrava da Babilônia podia também ser alugada como prostituta por um preço fixo, às vezes a um dono de bordel, às vezes a clientes particulares, com o senhor ficando com o pagamento. Essa prática se disseminou por todo o Oriente Próximo, no Egito, na Grécia e na Roma da Antiguidade - de fato, onde quer que existisse escravidão. Ao descrever a escravidão grega no nono e no décimo séculos a.C., M. I. Finley diz: "O lugar da mulher escrava era em casa, lavando, costurando, limpando, moendo alimentos. [...] Se elas fossem jovens, entretanto, o lugar delas também era na casa do senhor". Jovens escravas abasteciam os bordéis e haréns da antiguidade.
No período moderno ocorreu na África, na América Latina, nos Estados Unidos e no Caribe. A prática é mundial; exemplos podem ser citados para cada época e cada sociedade escravocrata. (Pag. 124)
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O uso sexual das servas por seus senhores é um dos temas da literatura europeia do século XIX, inclusive na Rússia czarista e na Noruega democrática. O uso sexual de mulheres negras por qualquer homem branco também era característico das relações raciais nos Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX, mas resistiu à abolição da escravidão e se tornou, no século XX adentro, uma das características de opressão de raça e classe. (Pag. 125)
[...] Para as mulheres, a exploração sexual representava a própria definição da escravidão, assim como não representava para os homens. De maneira semelhante, do período inicial do desenvolvimento de classes até o presente, a dominância sexual de homens de classes mais altas sobre mulheres de classes mais baixas é o próprio símbolo da opressão de classes das mulheres. (Pag. 126)
Assim como a subordinação das mulheres pelos homens forneceu o modelo conceitual para a formação da escravidão como instituição, a família patriarcal forneceu o modelo estrutural. Na sociedade Mesopotâmica, bem como em qualquer outro lugar, a dominância patriarcal na família tomava várias formas: a autoridade absoluta de um homem sobre os filhos; a autoridade sobre a esposa limitadas por obrigações recíprocas com os parentes dela; e o concubinato.
O pai tinha o poder de vida e morte sobre seus filhos. Tinha o poder de cometer infanticídio por abandono ou desamparo. Podia dar as filhas em casamento em troca de um valor para a noiva, mesmo durante sua infância, ou designá-las a uma vida de celibato a serviço do templo. Podia arranjar casamentos para filhos de ambos os sexos. Um homem podia penhorar sua esposa, sua concubina e seus filhos como garantia por uma dívida sua; se não conseguisse pagá-la, essas "garantias" se tornariam escravos por dívida. Esse poder vinha do conceito de que todo o grupo de parentes de uma pessoa era responsável por qualquer prejuízo de seus membros. [...] (Pag. 126)
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A autoridade absoluta do pai sobre os filhos deu aos homens um modelo conceitual de dominância e dependência temporárias em razão da vulnerabilidade dos jovens. [...] a autoridade parental precisava funcionar sob o controle tanto do ciclo da vida quanto do futuro poder em potencial dos jovens. O garoto, observando como seu pai tratava seu avô, aprendia sozinho como tratar o pai quando chegasse sua vez. Assim, o primeiro modelo de interação social com um igual que não fosse totalmente livre era a relação social entre marido e esposa. A esposa, cuja sexualidade já havia sido reificada como uma espécie de propriedade no comércio matrimonial, ainda possuía determinados direitos legais e de propriedade, e poderia impor, pela proteção de seus parentes, certas obrigações às quais tinha direito. É o concubinato, evoluindo dos privilégios patriarcais de homens dominantes da família, que representa a transição de dependência no casamento para a falta de liberdade.
Não existem evidências históricas suficientes para determinar com certeza se o concubinato precede a escravidão ou se surgiu dela. (Pag. 128)
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Há várias deduções implícitas nesses relatos: a mulher escrava deve servidão sexual ao marido de sua senhora, e o fruto dessa relação conta como prole da senhora. Todas as mulheres devem servidão sexual aos homens em cuja casa moram e são obrigadas em troca de "proteção", a gerar filhos. Se elas não puderem, suas escravas podem substituí-las nessa função, da mesma maneira que um homem pode pagar uma dívida com a garantia do trabalho de seu escravo ao credor. (Pag. 130)
[...] Seja vendo o "concubinato" como uma oportunidade de ascensão social ou como mais um modo de dominância e exploração, a instituição dele foi não apenas estruturalmente significativa, mas crucial para ajudar homens e mulheres a definir o conceito de liberdade e de falta dela. (Pag. 133)
[...]
No período de aproximadamente mil anos, a ideia de "escravidão" foi colocada em prática e institucionalizada de maneira a refletir a própria definição de "mulher". Pessoas do sexo feminino, cujas funções sexuais e reprodutivas haviam sido reificadas em transações de casamento, eram, no fim do período em discussão, em essência, consideradas diferentes dos homens em relação às esferas pública e privada. Assim como as posições de classe dos homens foram consolidadas e definidas pela relação deles com a propriedade e com os meios de produção, a posição de classe das mulheres foi definida por suas relações sexuais. (Pag. 133-134)
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Começou muito antes, em tempos pré-históricos, quando a primeira divisão sexual do trabalho imposta pela necessidade biológica evolutiva demonstrou a homens e mulheres que era possível fazer distinções entre as pessoas com base em características visíveis. Atribuíam-se pessoas a um grupo apenas em razão de seu sexo. É desse potencial socialpsicológico que depende a dominância estabelecida mais tarde. Em condições de complementaridade - interdependência mútua -, as pessoas aceitavam prontamente que grupos divididos por sexo tivessem atividades, privilégios e obrigações diferentes. É bem provável que a subordinação de "mulheres como grupo" a "homens como grupo", que deve ter levado séculos para se estabelecer com solidez, tenha ocorrido em um contexto de complacência dentro de cada grupo de parentes, a complacência dos jovens em relação aos mais velhos. Essa forma de complacência, considerada cíclica, portanto justa - cada pessoa tem sua vez na subordinação e dominância -. criou um modelo aceitável de complacência em grupo. Quando as mulheres descobriram que o novo tipo de complacência exigida delas não era da mesa categoria, o sistema já devia estar estabelecido com tanta solidez, que parecia irrevogável. (Pag. 137)
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O precedente de considerar mulheres um grupo inferior permite a transferência desse estigma a qualquer outro grupo que seja escravizável. A subordinação doméstica de mulheres criou o modelo com base na qual a escravidão se desenvolveu como instituição social. (Pag. 138)
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Quando a escravidão se tornou comum, a subordinação de mulheres já era um fato histórico. Se, naquele momento, pensava-se nisso de alguma maneira, deve-se ter incorporado à subordinação de mulheres um pouco do estigma da escravidão: escravos eram, assim como as mulheres, pessoas inferiores que podiam ser escravizadas. As mulheres sempre disponíveis para a subordinação eram agora consideradas escravas por serem como os escravos. A relação entre as duas condições estava na premissa de que todas as mulheres precisavam aceitar como fato o controle de sua sexualidade e de sua função reprodutiva por homens ou instituições dominadas por eles. Para mulheres escravas, a exploração econômica e a exploração sexual estavam ligadas do ponto de vista histórico. A liberdade de outras mulheres, que nunca foi a liberdade de homens, dependia da escravidão de algumas mulheres, e sempre foi limitada pelas restrições de mobilidade e acesso a conhecimento e capacitação. De modo oposto, para homens, o poder estava conceitualmente relacionado à violência e à dominação sexual. O poder masculino depende tanto da disponibilidade de serviços sexuais de mulheres na esfera doméstica quanto na disponibilidade e do desempenho tranquilo da força militar.
Distinções de classe e raça, ambas manifestadas a princípio na institucionalização da escravidão, baseiam-se no inextricável sistema de dominância sexual e exploração econômica presente na família patriarcal e no estado arcaico. (Pag. 138)
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